À esquerda, a barca do inferno vestida de vermelho, e à direita, a barca do paraíso vestida de branco e azul. Os panos que vestem ambas as barcas descem da teia, a toda a altura do palco.
No centro, um pano prateado sugere o rio da morte, e nele se reflectem as luzes de cada barca, na sua eterna luta pela posse das almas.
Neste auto de moralidade do século XVI, a linguagem é possuidora de uma riqueza que a distância temporal poderá tornar incompreensível.
Assim, a decisão de manter o texto em galaico-português integral, sem qualquer tipo de adequação à linguagem quotidiana do século XXI, foi contrabalançada pela opção de dotar as personagens com figurinos da actualidade.
Ao apresentar as personagens com trajes actuais, tentaremos elidir um pouco dessa distância provocada pelo linguajar vicentino, de modo a facilitar a identificação com o espectador.
Os adereços de cada personagem farão parte de jogos cénicos que possibilitarão ao espectador uma melhor compreensão do sentido do texto. O exagero nas dimensões de alguns adereços, a deturpação da função que lhes é atribuída, tudo servirá para elucidar as intenções do autor e sublinhar as suas críticas sociais.
A caracterização das personagens de acordo com estes pressupostos é o que está na base desta encenação.
O Diabo surge da plateia munido de um megafone, a tentar angariar passageiros para a sua barca. O seu discurso é sedutor, simpático, enérgico – um discurso publicitário. Traja como um mestre de cerimónias, com abas de grilo (o Parvo chama-lhe “Cigarra Velha”). A sua barca está em festa, pois espera receber muitos “convidados”.
Da cintura deste Diabo marinheiro pende uma rede de pesca, pois podemos considerá-lo como um pescador de almas. Usa um espartilho, pois trata-se de uma figura andrógina (o Fidalgo confunde-o com uma mulher), e traz uma lima de carpinteiro no bolso do casaco, que tanto pode utilizar para limar as unhas como para enveredar num combate de esgrima. Apoia-se numa bengala que lhe serve de remo e de martelo (também é juiz).
À medida que recebe as personagens, e consoante as reacções e os comportamentos de cada uma, o Diabo transfigura-se: é irónico, alegre, cerimonioso, simpático, agresssivo...
Por oposição ao Diabo, o Anjo apresenta-se imutável, numa quietude em que se confunde com a sua própria barca. Imperturbável, distante, frio, não olha para as personagens que o interpelam e por vezes vira-lhes as costas.
A sua função de juiz faz com que apenas seja caloroso com as personagens merecedoras do Paraíso: o Parvo e os Cavaleiros.
Tal como o Diabo, utiliza uma rede de pesca, instrumento que lhe permite “pescar as almas”.
O Fidalgo apresenta-se vestido de fraque, com cartola na cabeça, condecorações ao peito e bengala na mão. Vem acompanhado de um criado que obedece às suas autoritárias bengaladas. A sua vaidade e altivez, sublinhadas pela submissão do criado, exasperam o Diabo, que afirma já ter recebido na sua barca o pai do Fidalgo.
O Onzeneiro, que vivia dos elevados juros cobrados pelo dinheiro que emprestava, traz um bolsão vazio e as chaves das arcas recheadas de dinheiro cosidas à própria roupa, para não perdê-las. O próprio tilintar das chaves soa-lhe a dinheiro, fazendo-o sentir-se bem acompanhado.
O Parvo traz uma camisola de mangas exageradamente compridas e uns calções demasiado largos, símbolos de uma vida em que nada teve de seu e em que tudo lhe foi dado pela caridade alheia. A única coisa que possuiu foi a sua própria morte, e vem surpreendido e contente com essa aquisição.
As mangas da camisola também se assemelham a uma camisa de forças, de modo a caracterizar a sua demência.
O Judeu apresenta-se encolhido sob o peso de um bode. Da sua cabeça pendem os caracóis próprios dos judeus. Entra em cena a lamentar-se, como se no palco estivesse defronte ao Muro das Lamentações. Traz notas de tamanho exagerado, símbolo do poderio económico dos judeus, e com elas tenta comprar a sua passagem. Nem o Diabo o quer deixar entrar na barca com o bode. Acaba por lançar-lhe a rede e obrigá-lo a ir a reboque.
O Sapateiro vem vestido com a sua roupa de trabalho, e carregado com o peso de muitas formas de sapatos. O Diabo acusa-o de roubar o povo com o seu trabalho e para sublinhar essa ideia rouba-lhe as formas dos sapatos.
O Frade entra a dançar com uma dama que seduziu. Por baixo das vestes clericais, apresenta-se como um soldado. É um Frade mais mundano do que religioso. A sua dama traz um vestido garrido, mas um véu de beata cobre-lhe a cabeça. No início, a cena decorre com alegria, dança, jovialidade, mas o tom muda quando o Frade decide dar ao diabo uma lição de esgrima.
O Corregedor, identificado pela cabeleira de juiz e pelo martelo, enche a cena com a sua figura imponente. Por baixo da capa traz os feitos que o fizeram enriquecer, e exibe-os com orgulho. Acompanha-o o Procurador, que carrega um enorme livro das leis. Este livro simboliza o seu conhecimento distorcido da legislação, que lhe serviu de pedestal para a sua autoridade.
Brízida Vaz aparece no auge da sua decadência, um misto de velha corista e artista de music-hall.
O Enforcado, com vestes de marinheiro, traz ao pescoço uma corda. À medida que conta ao Diabo como foi convencido a enforcar-se, o Diabo enrola a corda, que é tão grande como a história que o Enforcado lhe conta.
Os Cavaleiros surgem com as vestes de Cruzados. São as únicas personagens que não sofreram qualquer tipo de actualização, pois pretende-se criar distanciamento face à glorificação da guerra santa.
A peça de Gil Vicente termina com a entrada dos Cavaleiros e do Parvo na barca do Paraíso, mas nesta encenação pretendeu-se criar um final circular: a peça termina como começou, com o Diabo a agarrar no megafone a fazer publicidade à sua barca e o Anjo a regressar à sua quietude.
Haverá sempre um Anjo e um Diabo à nossa espera para nos julgarem – uma boa maneira para acabar um auto de moralidade.